Todo segundo domingo de agosto é assim. Não assim exatamente, mas parecido. Eu sempre ligo pro meu pai logo de manhã bem cedo - porque quase nunca estamos na mesma cidade - para dizer Feliz Dia dos Pais. Minha família e eu nunca fomos muito de datas, de encher de presentes uns aos outros, de grandes comemorações. Mas sempre aproveitamos as brechas pra dizer uns aos outros que a gente se ama muito. A gente é muito unido mas não fica falando sobre o assunto, sabe como é?
E hoje eu desabei chorando quando falei com meu pai ao telefone, bem no momento em que eu disse Eu te Amo. Talvez por hoje entender o significado da palavra amor incondicional. Porque não foi sempre assim. Quando eu era pequena, e ele mais novo, eu o julgava. E a gente brigava muito. Minhas amigas amavam os pais delas mas eu não. Eu amava, mas ele nunca me contou uma história pra dormir, toda vez que era ele que ia me buscar na escola ele atrasava em média uns 40 minutos. E eu brigava com ele tentando chamar a atenção e sempre achei que ele não sentia nada. Que aquelas 3 crianças era um peso pra ele. E nunca entendi direito o jeito dele ser. Eu julgava e pensava que o fato dele ser fechado e de poucas palavras era insatisfação e falta de sentimento. E não era, nunca foi.
Comecei a perceber isso com 16 anos, no auge da minha rebeldia, numa noite que ele estava sentado no sofá, minha mãe na cozinha se matando de limpar/ cozinhar/ arrumar e ele me pediu alguma coisa banal. Eu tinha acabado de chegar e ele mal me cumprimentou, foi logo pedindo. E eu resolvi colocar pra fora o que eu sentia. E falar tudo o que eu pensava dele como pai, como marido e como homem. Eu não tinha esse direito. Eu poderia conversar com ele sobre ser pai, mas não tinha o direito de me meter na dinâmica de casal que ele tinha com a minha mãe. Nesse dia, a gente brigou muito. E ele saiu pra dar uma volta. E não, ele nunca bateu em mim. Minha mãe era quem me dava uns tapas na bunda quando eu era pequena. Mas meu pai nunca. Ele era de sermão. E eu sempre achei muito chato. Mas voltando... Ele saiu pra dar uma volta e minha mãe me puxou pelo braço e conversou comigo bem sério. Disse que eu não sabia do que eu tava falando, que bem provavelmente eu não conhecia meu pai, mesmo vivendo ali a 15 anos. Que ele me amava, que tinha orgulho de mim e que falava de mim com a boca cheia para os amigos. E que eu não sabia nada sobre a infância que ele teve, nem a forma que ele cresceu. Que não demonstrar o que se sente, não quer dizer que não se sente. Aí eu entendi um pouco, mesmo sem me convencer muito. E falei pra ela que me incomodava o fato dela estar sempre correndo, trabalhando, e ele lá, na frente da televisão, ou fazendo as coisas devagar, sem ajudá-la. E ela me explicou que ela gostava mesmo era de fazer as coisas do jeito dela, que ela fazia porque queria, não porque precisava. E eu não entendi nada. Não naquele momento.
Alguns anos de terapia depois, eu entendi que a dinâmica dos meus pais eram essa. E eles continuam juntos até hoje e posso dizer que vi os dois brigando 1 vez na vida. Um domingo de muita chuva que meu pai sumiu com o meu irmão do meio e chegou em casa 2 horas depois do combinado para nos levar pra almoçar. Nessas, minha mãe já tinha improvisado um macarrão pra mim e pro mais novo. Ele chegou com a maior calma do mundo e ela deu com a panela que ela estava enxugando no braço dele. Ele tinha ido na casa dos meus avós, a chuva ficou muito forte e até a tinha do telefone cortou. Ele não conseguiu ligar para avisar. E esperou a chuva parar para vir embora. Lembro até hoje que fiquei assustava com a cena. Mas lembro de ter pegado na mão dos meus irmãos e sentarmos encostados na parede, escutando a conversa com um copo e rezando para que ficasse tudo bem. Eles não ficaram nem 4 horas brigados e eu não entendi nada. Não naquele momento. De novo. Mas hoje eu admiro e vejo que não é por comodismo que eles estão juntos até hoje. É porque eles vivem bem assim desde sempre.
Com o tempo, a distância, a idade e um tempinho de terapia eu comecei a mudar a imagem que eu tinha do meu pai. E ele começou a mudar. Os filhos saíram de casa cedo. Eu com 17 anos, o do meio com 18 e o mais novo com 16. Ficaram só os dois. No começo, minha mãe ligava para nós - sim, moramos juntos por uns 3 anos mais ou menos - umas 3 vezes por dia. Mas ela percebeu rápido que não dava pra controlar mais com aquela distância toda. E a gente parou de atender telefone, claro. Eu não estava em casa pra saber, mas imagino que meu pai ganhou mais espaço. E começou a sair também da sombra da minha mãe. Já era ele quem nos telefonava, que queria conversar sobre a vida. Porque antes, era sempre ela. Era ele que aconselhava sobre as coisas práticas da vida. Sobre decisões. E sempre me apoiou em tudo. Eu nunca vou esquecer de quando eu estava em Toronto e queria continuar lá. E estava com medo do que eles iam pensar. Porque eu sempre fiz o que eu quis, mas a opinião e apoio deles é importante. Eu liguei para pedir opinião, conversar... e estava disposta a vir embora depois dos 3 meses, mesmo não querendo. E ele disse: filha, fica. Vai te fazer bem e já está te fazendo. Você tem dinheiro, não tem? Se precisar, não vai ser isso que vai te impedir, a gente te ajuda. E nem era. Era medo só.
E hoje, quando eu disse "Pai, eu te amo!" eu desabei. Desabei por lembrar de tudo isso. Por perceber que ele nunca desistiu de mim como filha. E que eu nunca desisti dele como pai. Por conseguir aceitar de verdade como é cada um, a forma que se mostra e acreditar em sentimentos reais. Hoje eu posso dizer com todas as letras que eu o amo. E que eu não vivo mais de estereótipos. Chorei porque eu queria ter percebido tudo isso antes. Mas principalmente porque, hoje, eu sou muito feliz por ter o pai que eu tenho. Independente de tudo que eu tenha deixado de entender a anos atrás.
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