sábado, 27 de março de 2010

Metades

Não sabia o que era quando se despediram. Talvez ele sinta pena de mim, ela pensou. Sim, pena. Não sabia muito bem o que ele sentia em relação a ela. Ela chegou a pensar que ele estava ali como reparação. Não pelo mal que ele a fizera. Isso nunca existiu. Era como se fosse um pedido de desculpa antecipado, por ele não poder ser quem ela queria pra ela. E não, ele não podia mesmo. Nunca seria inteiro. Nunca quis isso. Ela sempre soube, mas ele nunca acreditou que ela realmente soubesse. Ele achava que ela dizia da boca da fora e, estando perto, ele sentia que poderia reparar todo o bem que não pôde dar.

Ela estava acostumada com pessoas que chegavam na sua vida pela metade. Ocupadas e perdidas. Ou os dois. Se era pena, se era um pedido de desculpas, ele poderia tê-la poupado disso. Era acostumada a sobreviver com pouco espaço pra si. Acreditava merecer pouco. Talvez merecesse pouco mesmo, mas nunca ninguém lhe deu muitos parâmetros para que ela conseguisse repensar a sua vida. Uma vida preenchida de migalhas, de quem divide o quarto e o coração dos outros com tanta coisa que mal consegue esticar as pernas, abrir os braços e receber. E doar. Nunca conseguiu isso: se doar. Mesmo sem nunca ter experimentado, ela estranhamente sabia que gostava de dar presentes. Embrulhados com laços e fitas, com ouvidos e carinho. Mas morriam todos nas suas mãos. Seu guarda-roupa e sua memória estavam abarrotados de presentes vencidos. Negados. Desnecessários.

Jantaram juntos naquela noite. Não se olharam nos olhos. Gostaram da companhia um do outro. Riram. Sorriram com os lábios. Ela sentiu vontade de beijá-lo pela força do hábito. Passou rápido. Ele nem estava ali. Eram só partes dele, desconexas e em pedaços. Não havia mais desejo. A cumplicidade acabou no momento em que fizeram o acordo de não dividir mais a mesma cama e de não confundirem mais as pernas. Ela chegou a duvidar que isso existiu um dia ou se ele tinha inventado tudo aquilo. Pensou que talvez tivesse sido uma forma dele sair da rotina, uma tentativa de preencher o seu vazio, calar a sua falta sabe-se lá do quê.

Ela sempre preferiu os acordos velados, sem apertos de mãos. Discutidos com o olhar. Acreditava que palavras eram desnecessárias em certas ocasiões. Preferia mesmo as relações vividas, não discutidas. Mas resolveu tentar viver diferente. Mais uma vez, foi disponível. Estava disposta olhar por outro ângulo.

Pela última vez, ela sentiu saudades e se conformou. Não era ele. Amassou e jogou fora tudo aquilo que desejou viver ao seu lado. Se perguntou pela última vez o motivo dele tê-la encontrado para jogar conversa fora. Tentou perguntar a ele o que lhe faltava na vida, o que sinceramente era importante, e mudaram logo de assunto. Ela percebeu que, muitas vezes, ela não conseguiria sair do raso, do superficial e viver de forma plena ao lado de alguém. Isso ela só conseguia fazer bem sozinha. Pelo menos por enquanto.

Por um momento, ela tentou adivinhar o que ele sentia. Não em relação a ela, isso ela já havia desistido. Tentou adivinhar o que era felicidade pra ele. Tentou olhar para o fundo de sua alma, ler além dos seus lábios e desistiu. Percebeu que ele não dividiria isso, não com ela. Não havia mais o peso da obrigação de serem amantes, de se esconderem do mundo para viverem uma vida só deles. Só eram amigos, agora.

Se despediram e ela foi tomada por tristeza. Aumentou o som tentando parar de escutar seus sentimentos. Não estava acostumada a mudar pessoas de lugar na sua vida. Para ela, as pessoas só entravam ou saíam. Diminuíam com o tempo. Aumentavam com o tempo. Só com o tempo, não com palavras escritas. Se estranhou. No caminho, se perguntou porque vivia com as metades deixadas na sua vida. Nunca conseguia completar um inteiro. Ter alguém por inteiro. Eram como pés de sapatos solitários, inúteis sem o outro pé que formasse o par. E ela já tinha um armário cheio deles.

Jantaram juntos naquela noite. E ela percebeu que, como sempre, ela estava sozinha. E, mais uma vez, com mais uma metade. Percebeu que tinha uma vida cheia de metades soltas. Sorriu: se sentiu inteira e só.

Um comentário:

  1. Ah, enquanto aceitamos metades, é porque não somos inteiros.

    Enquanto tentamos completar nossa 'metade' nos fadamos ao sofrimento... Ninguém é capaz de nos atender tão bem quanto nós mesmos. Somente nós mesmos somos capazes de suprir tanto quanto nos falta.

    Somente o que é completo pode achar algo para lhe fazer companhia. Partilhar, dividir, parceiros da mesma sorte, somente os que completos são, somente quem encontrou em si as respostas e as partilha com quem também já as conhece.

    Sem apoio, sem amparo. Consortes.

    Sós? Somos infinitamente sós.

    Beijos.

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