Eu enrolei não sei quanto tempo para escrever este texto. Me pegava pensando: preciso escrever sobre como tudo aconteceu pra organizar a minha vida, que eu fiz questão de bagunçar exatamente quando ela estava toda arrumadinha. Cartesiana. E resolvi escrevê-lo só agora, depois de ter bagunçado tudo e começado a arrumar.
Quem me conhece sabe que eu consigo ser metódica e racional ao mesmo tempo que ajo de forma impulsiva e louca. Não, eu não sou bipolar e nem sofro de dupla personalidade. Mas oscilar entre polos é a forma que eu encontrei de ser feliz e viver fora do tédio.
Pois bem, adiei este texto, hoje percebo, por medo de não conseguir lidar com o que eu pudesse descobrir no meio das linhas, organizando o que eu ainda precisava manter bagunçado por mais algum tempo.
Abril de 2009. Eu já estava em São Paulo há quase dois anos, já havia trocado de emprego uma vez. Estava trabalhando no lugar que sempre me imaginei trabalhando, fazendo algo que eu já havia feito e que gostava e, além de tudo, tinha acabado de descobrir o quanto eu amava dar aulas. Tinha um bom salário, minha casa já estava mobiliada, meu carro pago, meu mestrado concluído. Eu só não tinha um namorado porque, bem... sei lá, porque sempre fui incompetente pra isso e, depois de aceitar a minha limitação, parei de me desesperar já que não adiantava nada mesmo. Quem olhava de fora provavelmente pensava: nossa, como ela é feliz com a sua vida certinha e bem sucedida.
Estranho, mas eu também tinha esta impressão sobre mim e, vira e mexe, me sentia culpada por sentir um vazio que eu não fazia a menor ideia de onde vinha. Comecei a ter crises compulsivas de diversas coisas. Certos dias eu chorava compulsivamente, mesmo no trabalho, no meio de milhares de e-mails e telefonemas que preenchiam os meus dias. Aí, nos finais de semana eu tinha crises compulsivas de compras (sendo que eu nunca fui consumista na minha vida!). Certas tardes e noites eu comia chocolate compulsivamente e, em outros, eu dormia por muitas horas seguidas. Não precisava ser nenhum gênio da psicanálise para perceber que eu estava fugindo. Eu só não sabia do quê.
Era a minha vida profissional que não andava bem, isso era claro. Quase não existia vida pessoal já que eu nem um namorado tinha para ter crises de relacionamento e sentar pra discutir a relação. Também era bastante claro pra mim que eu não me encaixava naquilo que administradores e profissionais de recursos humanos adoram dizer: nossos valores. Não da instituição, porque eu continuava gostando do lugar que eu trabalhava e me identificava bastante, mas nos valores da minha área, das pessoas que dividiam o dia a dia comigo e no que, de fato, minha área era responsável. Eu não gostava de visitar clientes da forma que eu visitava, eu não gostava de me sentir ultra responsável por certas coisas sendo que os méritos eram sempre divididos e os erros aumentados e jogados em cima de uma só pessoa: eu.
Eu sempre gostei de ser cobrada, de saber exatamente as minhas responsabilidades, de conhecer o começo-meio-e-fim. Muita gente não gosta, eu adoro. É simples: eu sou o tipo de pessoa que gosta de abraçar o mundo. Se ninguém diz exatamente qual o pedaço do mundo que eu preciso alcançar com os braços, eu vou querer abraçar o mundo inteiro. Em outras palavras, se eu não sei qual é exatamente a minha função e tudo o que eu tenho que fazer, além do que é função das outras pessoas fazerem, eu vou querer fazer tudo e pensar que a responsabilidade é minha. Simplificando: muitas vezes eu fazia o meu trabalho e de mais meia dúzia de pessoas e sempre achava que era o meu dever dar conta de tudo. Eu andava exausta, eu dormia ou trabalhava nos finais de semana até o dia em que, num dos telefonemas da minha mãe, ela respira fundo e diz: minha filha, você está vivendo pra trabalhar. Você deveria pensar em trabalhar pra viver.
Chorei mais três dias seguidos depois disso. Comecei a pensar que ela também trabalhava demais mas havia uma diferença. Ela adorava o que ela fazia, via sentido no trabalho dela, ela não compartilhava do mesmo vazio que o meu. Comecei a me sentir ainda mais culpada pelo que eu estava fazendo da minha vida e, dessa vez, com razão. Só eu era responsável pelo que estava acontecendo. Depois desses dias, imaginava como seria largar tudo, ou pelo menos boa parte: eu ainda amava dar aulas.
Só de imaginar, me sentia derrotada, fraca, incapaz de lidar com a realidade. Sabia que em qualquer empresa as coisas não aconteceriam de forma muito diferente. Também comecei a me perguntar se, de alguma forma, largar tudo, chutar o balde, não seria auto-boicote. Agora que a minha vida estava exatamente da forma que eu imaginei, eu não queria, não me sentia merecedora de ter a vida que eu busquei. Mas não, não era isso. A parte do auto-boicote sempre aconteceu só na minha vida de relacionamentos frustrados e superficiais. Eu não me permitia ser feliz ao lado de alguém e ponto. Não transbordava mais pro resto da minha vida. Minhas barreiras tinham sido muito bem construídas.
Abril de 2009. Pedi demissão sem saber com o que a vida me esperava. Eu só fazia ideia que continuaria a dar aula nos próximos 6 meses. Tentaria aplicar pro doutorado para algumas universidades fora do Brasil, sem nenhuma certeza, para um curso que só começaria em setembro de 2010, caso eu fosse aceita. De metódica e racional, acordei do avesso e fui direto pro polo oposto: impulsiva e louca. Lúcida. Nunca tive tanta certeza na vida de que eu estava fazendo a coisa certa.
Vivi os meses seguintes com leveza e incertezas. Há quem pense que eu estava vivendo uma vida de forma desacelerada, com bastante tempo para não fazer nada e pensar na vida. Mas eu gosto mesmo é de fazer milhares de coisas ao mesmo tempo e foi assim que aconteceu. Eu estava estudando para as provas pedidas para o processo do doutorado, estava dando aulas, estudei várias coisas que eu sempre tive vontade e nunca tive tempo, voltei a encontrar os meus amigos, vi mais meus pais, me apaixonei e quebrei a cara de novo. Uma perspectiva diferente de viver que a maioria das pessoas têm. As pessoas me encontravam e diziam: nossa, como você está bem? Como você parece feliz? Escutava tudo aquilo e pensava: será que não é normal as pessoas parecerem felizes e estarem bem? Ou será que as pessoas acham que para você se sentir completa você precisa trabalhar 12 horas por dia?
É, penso que deve ser a segunda opção. As pessoas não estão muito acostumadas a se permitir ter tempo para elas, não suportam a possibilidade de enxergar a vida de uma perspectiva diferente do que sempre enxergou, em fazer coisas que dão prazer ao invés de fazer só o que dá dinheiro. Claro que dinheiro é importante, eu sou economista e não negaria isso nunca! Mas não dá pra abrir mão de certas coisas na vida por dinheiro. Tem economista que adora dizer que tudo tem seu preço. Concordo mas, como tudo na vida, há exceções. O que seriam das regras sem elas?
2009 terminou arrastado. Viver só de amor no coração e leveza não é assim tão fácil. É difícil lidar com a liberdade. Ainda mais quando você é obrigado a dar de cara todo dia com a sua vida bagunçada, sem horário pra acordar, sem rotina pra seguir, sem metas para cumprir. Eu não poderia continuar no mesmo lugar que eu estava desde o chute do balde. Viver de incertezas é bom só até antes de que os momentos incertos se tornem certos. A única certeza que eu tinha na vida era que um dia eu vou morrer e que eu não sabia mais de nada além disso. Eu continuava sem planos, sem rumo e com todas as vontades do mundo. E não dá pra ter tudo ao mesmo tempo. Estava na hora de colocar minhas alternativas na mesa e fazer escolhas. E fazer escolhas não significa abrir mão da liberdade. Escolhas não como cobrança. Mas acho que a gente sempre sabe quando está preparado para dar um passo à frente (ou para trás, ou mesmo ficar parado!).
Ainda sem as respostas do doutorado, minha vida gritava por ordem. Não dava para esperar por setembro de 2010. Eu precisava de novos sonhos já que aquele de ter uma vidinha certinha com estabilidade financeira, casa, carro e emprego não tinha dado certo. Sonhar com novos amores nunca me levou pra lugar nenhum, eu bem sabia. Então, namorar, casar e ter filhos não era uma boa opção. Precisava de uma direção.
Esperei a ansiedade que tinha começado a me aprisionar ir embora e comecei a enxergar novos caminhos na minha frente. Caminhos que começaram a ser possíveis só depois de ter coragem de cortar certos vínculos e de abandonar realidades rígidas. Ainda faltam certezas mas já aprendi a viver sem elas. Saber para onde eu estou indo já me basta. Já é possível voltar a fazer barulho dentro do meu silêncio e querer o céu sem tirar os pés do chão. Sem muitos planos e muitas certezas, caminhos abertos, sem trilhos, me acalmam.
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